Imagem: Vanity Fair
Com lançamento adiado para outubro de 2021, a nova adaptação cinematográfica do romance "Duna" (1965), de Frank Herbert, agora conta com a direção de Denis Villeneuve, nome que já se tornou querido entre os fãs de ficção científica após suas adaptações de "A Chegada" (2016) e "Blade Runner 2049" (2017).
Muita gente aguarda o lançamento para ver o que Villeneuve fará com o clássico que não foi devidamente honrado nos anos 1980, quando David Lynch decidiu adaptá-lo. O chamado "duniverso" conquistou os leitores justamente pela riqueza de detalhes e a complexidade dos povos e suas culturas. Mas, assim como à época de seu lançamento, ressurge o debate sobre como a franquia se apropriou de referências da cultura islâmica e árabe na construção de um universo fictício.
O tema foi resgatado assim que o novo trailer da adaptação foi lançado online. Nas redes sociais, posts como o de Zaina Ujayli rapidamente partiram para a acusação de que "Duna" é uma narrativa racista sobre um "salvador branco" (white savior). Enquanto alguns aplaudiram a diversidade do elenco (Zendaya, Javier Bardem e Oscar Isaac), Ujayli reforçou que "não é só porque você vê rostos marrons no elenco que você deve aplaudir.
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Claramente todas as minorias não são vistas de forma igual por Hollywood". Em outras palavras, enquanto na adaptação de Lynch houve um gritante whitewashing (substituir personagens fictícios de etnia estrangeira por um ator ou atriz branco ou branca), uma vez que todos os personagens eram brancos (mesmo aqueles descritos no livro como possuindo pele escura, no caso dos Fremen), Villeneuve cumpre com a estética, mas não com a ética por trás da escolha do elenco.
Críticos argumentam que Herbert comete um "orientalismo" ao se apropriar da história e da cultura árabes, em que um colonizador ou salvador branco predestinado consegue emancipar um povo ignorante e supersticioso. À primeira vista, "Duna" pode parecer uma narrativa colonizadora, mas essa percepção fica turva quando nos aprofundamos e vemos que Herbert coloca os nativos como as personagens inspiradoras, ainda que o protagonista seja um estrangeiro que toma o papel de profeta. Nesse caso, é interessante acompanhar a análise de Hanna Flint sobre como o escritor norte-americano trabalhou em "Duna" as variáveis religião, ciência, política e sociedade.
A jornalista menciona que, apesar de ter sido criado católico, Herbert converteu-se ao zen-budismo quando adulto e isso o influenciou na construção do universo de "Duna", uma vez que este é um amálgama de religiões e culturas, ainda que a principal referência se mantenha geolocalizada no norte da África e no Oriente Médio. Há correlações mais óbvias como o fato de a especiaria Melange ser uma commodity somente encontrado em Arrakis, e que estabelece conexão com a exploração do petróleo no Iraque, mas também há diferentes referências linguísticas de adaptações ou inclusões de termos de origem arábica, como elencado neste artigo. Este tipo de recurso, aliás, é bastante comum entre autores de ficção científica e fantasia de meados do século 20, isto é, recorrer a termos de línguas estrangeiras e torná-los expressões "autorais" de seu próprio universo — pense em, por exemplo, como a palavra "devotchka" (menina, em russo) é usada como uma gíria em "Laranja Mecânica".
Se, por um lado, muçulmanos e pessoas de origem árabe podem encontrar em "Duna" referências de sua cultura de forma elogiosa, por outro ainda há uma severa crítica feita à maneira como o autor teria buscado suas referências na construção da franquia. É conhecido, por exemplo, a influência de obras como "Lawrence of Arabia" (1962) ou mesmo o livro "The Sabre of Paradise" (1960), de Lesley Blanch. Em ambos os casos, nos deparamos com uma adaptação cinematográfica dos escritos de T. E. Lawrence, militar britânico que ficou conhecido por se envolver com a Revolta Árabe durante a Primeira Guerra Mundial, e com um romance histórico sobre a Grande Guerra do Cáucaso (1834-1859), quando um grande líder muçulmano conhecido como o "Leão do Daguestão" teria impedido a invasão de tropas russas por quase 25 anos.
O escritor só "recriou" um Oriente Médio no espaço, milhares de anos depois, no futuro. Um Oriente Médio que, pasmem!, pode finalmente encontrar paz (desde que guiado por um salvador branco estrangeiro, como defende Anand Balakrishnan). Portanto, trata-se de um épico colonialista e racista, ao mistificar a cultura e a religião dos povos do norte da África e do Oriente Médio, o que no inglês eles se referem a partir da sigla MENA (Middle Eastern, Northern African).
Apesar das polêmicas, "Duna" não deve (ou ao menos não precisa) ser uma obra "cancelada". Ainda de acordo com Hanna Flint, uma interessante reflexão deixada pela franquia de Herbert é justamente essa ponderação entre ciência e religião. Enquanto o matriarcado das Bene Gesserit funciona como uma espécie de seita eugenista com a missão de gerar um superumano (Kwisatz Haderach), as mulheres atuam como missionárias que semeiam uma profecia entre diferentes povos da galáxia, dentre eles os Fremen, que aceitam os protagonistas refugiados como supostos predestinados.
Em outras palavras, o que Flint sugere é que Herbert expressa na irmandade das Bene Gesserit uma representação de como a ciência, em certo ponto, pode virar o equivalente do messianismo. Nas palavras de Timothy O'Reilly, biógrafo de Frank Herbert, "é muito fácil ver o messianismo como algo que acontece apenas às pessoas do deserto como os Fremen. É menos aparente o fato de que o uso neurótico de Herbert da ciência nas civilizações ocidentais modernas traz o mesmo padrão de uma religião messiânica". Nesse sentido, "Duna" se faz ainda mais contemporâneo quando vemos a maneira como pessoas têm se juntado em torno de conhecimentos (pseudo)científicos entrelaçados a narrativas messiânicas — seja quando acreditam que óleos essenciais curarão o câncer ou quando poderemos viver para sempre como avatares no ciberespaço.
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