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Crítica | Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski

Em O Homem Irracional, Woody Allen nos apresenta um protagonista desiludido, beberrão e frustrado com as suas ideias filosóficas. Numa busca por sentido em sua vida, Abe Lucas (Joaquin Phoenix) emula os pontos nevrálgicos do romance Crime e Castigo, de Dostoievsky, dando-lhe uma roupagem contemporânea e mais pessimista. O denso romance do autor russo já havia sido assimilado por filmes anteriores do cineasta, entre eles, Match Point – Ponto Final e Crimes e Pecados, ambos excepcionais, haja vista o alto teor de reflexão.
Woody Allen, no entanto, não é o único cineasta leitor de Dostoievsky. Há resquícios em Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock. Mentiras Sinceras (de Julian Fellowes) e Caché (de Michael Haneke) também trazem as suas referências. O que todas as obras citadas têm em comum é a apresentação de personagens entre a linha da sonegação e da culpa, da civilização e da barbárie, do pecado e da redenção. Tais obras também possuem outro ponto em comum: leituras parciais ou diretas do romance de Dostoievsky, um dos mais conhecidos e lidos, clássico selecionado pelo estreito cânone literário mundial.
Em Crime e Castigo são muitos os temas: os centros urbanos com muitos contrastes sociais, a frieza da sociedade diante da miséria e da pobreza, a necessidade de reflexão sobre a reabilitação de pessoas que vacilaram no percurso da vida, isto é, cometeram crimes, além do tema central, focado na forma como as pessoas conseguem lidar com a culpa, um sentimento que pode ser corrosivo, a depender do grau de envolvimento e da situação.
Como aponta Bakhtin, o narrador muda de posição constantemente. Polifônico, o romance dá espaço para diversas vozes. Ao longo da extensa obra, criticada por alguns por ser um projeto muito moralista do escritor, acompanhamos a trajetória de Raskolnikov, um jovem estudante que durante um ato sem reflexão, dizima a vida de uma agiota que o pressionava. Os golpes de machado são desferidos contra a mulher que metaforicamente representa a opressão social. Será que o rapaz fez o bem para a sociedade, eliminando um ser humano desprezível e maledicente? As perguntas são levantadas constantemente, mas o rapaz perde a mão ao ter que eliminar outra senhora, uma testemunha, irmã da agiota, que para sua surpresa, estava próximo e viu tudo em detalhes.
Diante do crime duplo, o protagonista entra numa profunda crise. Ele leva a vida de estudante e mal consegue bancar as suas despesas. Depois de ter tomado dinheiro emprestado e não conseguido quitar a dívida, resolve eliminar a credora. Agora, com dois assassinatos nas “costas”, Raskolnikov encontra-se na linha entre contar a verdade ou carregar para sempre a culpa internamente, numa dor terrível, a da consciência. O que fazer? Nas investigações ele sai ileso, mas um agente policial o pressiona constantemente, situação que o leva a ficar cada vez mais nervoso.
Será preciso a chegada de Sônia, mulher “iluminada” e “imaculada”, catalisadora da nova ordem em sua vida, isto é, o caminho religioso. Ele confessa os seus crimes e condenado, passa oito anos exilado na Sibéria, preso numa penitenciária, levado a repensar a sua vida e aceitar o “caminho da luz”. Escrito num contexto histórico marcado pela desigualdade social e extensa pobreza na Rússia, o romance tem como pano de fundo o regime czarista que antecede a Revolução Bolchevique, uma época de efervescência e mudança de paradigmas.
Para a crítica literária, a obra é também grande influenciadora do avanço do gênero romance, um modelo relativamente novo e em transformação quando a trajetória de Raskolnikov foi publicada. Tratado como uma das obras mais conhecidas de Dostoievsky, juntamente com Os Irmãos Karamazov (considerado pelos críticos como o romance-síntese da sua vida) e O IdiotaCrime e Castigo é um material em potencial para debates e questionamentos acerca dos limites da moral e das leis, o livro é o resultado das reflexões do autor durante o período em que ficou exilado. Com caráter autobiográfico, o romance teve a sua concepção quando Dostoievsky foi preso pelo regime do Imperador Nicolau I, da Rússia, ao condená-lo por integrar grupo de conspiração contra a política hegemônica.
Confinado com assassinos, estupradores e outros criminosos, o escritor sentiu de perto a dupla camada que envolve os indivíduos que vivem “fora da lei”. Ao abrir precedentes para pensarmos no sistema coercivo que transforma estas pessoas, levando-as aos atos indesejáveis dentro de uma “ordem civilizatória”, torna-se necessário pensar também nos códigos que regem as leis e suas punições, perguntando-se sobre o seu real funcionamento e adequação, numa discussão que deságua nos debates sobre os Direitos Humanos, tema bastante polêmico e atual. Há vida após o crime? A ressocialização é algo coerente? Como punir um criminoso? Só há caminho através do trajeto religioso? Estas e outras perguntas pululam ao passo que a leitura de Crime e Castigo avança.
A crítica literária também reforçou que o romance conseguiu trazer para o popular, alguns temas considerados mais herméticos. Ao versar sobre o homem tomando decisões que estão acima da lei, num passeio tortuoso pela consciência de alguém abalado pelo crime que cometeu, Crime e Castigo encontrou ressonâncias nas obras de Freud, Sartre, Nietzsche, Albert Camus, George Orwell, Marcel Proust, Franz Kafka, Marcel Proust, Ernest Hemingway e outros autores de áreas como a Psicologia, Sociologia e escritores de narrativas existencialistas.
Além das releituras de Woody Allen, o romance ganhou numerosas traduções intersemióticas: Nina, filme brasileiro de Heitor Dhalia que se inspirou no livro para contar a história de uma moça pobre que tenta sobreviver numa desumana metrópole; Frank Sinatra protagonizou Confidências de Um Assassino, de 1959, dirigido por Dennis Sanders; o alemão Josef Von Sternberg comandou a versão de 1935; O Estudante, lançado em 2012, é a leitura  oriental, assumida por Darezen Omirbayev. Estes são alguns dos vários exemplares, dentre tantas produções audiovisuais inspiradas neste romance conhecido por influenciar narrativas que tratam de um personagem entre a culpa e a omissão.
Crime e Castigo (Rússia, 1866)
Autor: Fiódor Dostoiévsky.
Editora: Editora 34
Páginas: 620.

LEONARDO CAMPOS . . . . Tudo começou numa tempestuosa Sexta-feira 13, no começo dos anos 1990. Fui seduzido pelas narrativas que apresentavam o medo como prato principal, para logo depois, conhecer outros gêneros e me apaixonar pelas reflexões críticas. No carnaval de 2001, deixei de curtir a folia para me aventurar na história de amor do musical Moulin Rouge, descobri Tudo sobre minha mãe e, concomitantemente, a relação com o cinema.
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