Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? / Ter loucura por uma mulher / E depois encontrar esse amor, meu senhor / Nos braços de um tipo qualquer? (Lupicínio Rodrigues — Nervos de Aço)
O último americano virgem poderia ter salvo vidas
ou como a falta de um cinema formador de caráter se conecta com o soyboyzismo, o trouxismo, o fenômeno incel, o surto de friendzonagem, o gayzismo e o massacre programado da masculinidade nos dias atuais.
Houve um período com auge ali na primeira metade dos anos 80 em que uma onda de filmes com temática misturando um ambiente adolescente-estudantil, e aventuras sexuais fez enorme sucesso de público. A ponto de criar se não um subgênero do cinema, pelo menos um bom número de filmes de comédia, seguindo mais ou menos uma mesma fórmula. Talvez tivéssemos ali um sub-subgênero. Esse período (ou estilo) do cinema americano pode ser visto com vários paralelos –desde que guardadas as devidas proporções– com o período das gloriosas e cultuadas pornochanchadas brasileiras dos anos 70 e início dos 80. Esses filmes eram uma espécie de pornochanchada à americana, onde a despeito de neles estarem presentes vários jovens atores que no futuro seriam respeitáveis ícones de Hollywood, o que importava mesmo (tanto para os produtores quanto para a garotada que assistia) era a quantidade de peitinhos por centímetro quadrado de tela. Semelhante ao que ocorreu no Brasil, onde muitos astros e coadjuvantes de pornochanchadas que se prestaram alegremente aos papéis e situações mais zoadas possíveis, se transformarem em astros de gabarito “das novelas Globo”. Tão “de gabarito” que muitos anos depois passaram a posarem e viverem dando a impressão de que aqueles pequenos micos do passado não eram nem com eles.
A exemplo do sucesso estrondoso (não tanto com a crítica, mas bastante com o público¹) de Porky’s (que chegou a render até um jogo para o Atari 2600) e extrapolando um pouco a temática sexual além da comédia estudantil escrachada inciada na linha de Clube dos Cafajestes (National Lampoons’ Animal House, no original em inglês, de 1978) o filme específico que abordarei aqui nesse texto fez parte dessa leva.
No meio dessa onda de filmes da “pornochanchada americana”, há um filme específico que carrega ali no meio de sua simplicidade oitentista uma mensagem tão forte, que caso tivesse sido usado como material educativo nas décadas seguintes, poderia ter evitado milhões de desilusões amorosas. Também poderia ter evitado centenas de milhares de desequilíbrios emocionais; e até mesmo poderia evitar alguns tiroteios e massacres em escolas. Sim, eu falo de mortes. Poderia ter evitado até mortes. Esse filme atende pelo nome de “The Last American Virgin” (no Brasil “O Último Americano Virgem”) lançado em 1982, dirigido por Boaz Davidson.
Numa daquelas noites de sábado pré-adolescência, num dos Super Cine da Globo, você provavelmente pode tê-lo assistido. Quando muitos ainda não eram velhos suficiente para irem pras noitadas, nem jovens o suficiente para resistirem aos hormônios que ordenavam uma caça televisiva por um peitinho visível enquanto a família dormia. Outros um pouco mais jovens podem tê-lo visto numa das milhares de vezes em que o SBT reprisava esse tipo de filme nas tardes entre os anos 90 a início dos 2000. Não importa quando, na verdade. O que importa aqui, a mensagem que realmente me veio ao lembrar desse filme, é o quanto ele carrega escondida em sua aparente irrelevância cinematográfica² uma poderosa chave capaz de abrir a mente de muitos moleques bocós que o assistiram.
O filme conta a história de um jovem chamado Gary, típico estudante do high school americano dos anos 80. Gary é o típico cara que as garotas não prestam atenção, e está naquela fase em que tudo que importa pra ele é transar pela primeira vez. Gary está sempre na companhia de seus amigos Rick e David em suas aventuras em busca do sexo, sendo comum que seus dois amigos se dêem bem por serem mais espertos, bem apessoados e/ou mais hábeis no trato com as meninas do que Gary. Nosso protagonista é na verdade o primeiro tapa na cara do filme, o que dá a essa obra uma camada escondida a mais do que se espera: o tempo todo os fracassos e trapalhadas dele jogam na cara que Gary é você, que está assistindo. Não é o cara mais bonito da turma, não é o cara mais popular, não é o mais malandro que consegue driblar as limitações (ser feio, gordão, etc) e se enturmar com a galera, enfim: Gary é o comunzão, o invisível, o cara para quem as garotas não olham duas vezes. No começo do filme, essa noção pode passar despercebida mas à medida que o filme avança ela começa a gritar. O tom do filme, que começa certinho dialogando com o estilo das comédias picantes da época, gradativamente vai ficando mais sério, e as aventuras atrás de sexo mudam para um romance mais escrachado quando Gary se vê apaixonado por Karen, uma estudante com quem começa uma amizade. Rapidamente, se estabelece um triângulo amoroso quando as atenções da moça passam a se dividir entre o bonzinho, atencioso, capaz de fazer tudo por ela, Gary e Rick, o amigo mais popular, mais bem-sucedido, mais bonito e mais cobiçado pelas garotas. A crueldade com que o roteiro escracha a betagem de Gary, o quanto ele se sujeita a uma situação imbecilmente babaca (para os 80s, não tanto para hoje) e o final absolutamente sem a menor piedade, 100% comprometido com a realidade dos fatos, são impressionantes. A cena final é capaz de causar (ou pelo menos era, lá pelos 80) lágrimas, só que não de tristeza, mas sim de raiva.
A construção da história que mostra um jovem que foi completamente dominado por uma paixão irracional a ponto de ser colocado numa das maiores friendzones da história do cinema. Mostra, a título de conto preventivo, o quanto a irracionalidade e a total submissão aos caprichos da paixão podem destruir emocionalmente a vida de um jovem. A história traz a chave do entendimento de algo que se perdeu em algum momento na história, que permitiu que toda uma geração de soyboys, incels, low-energy dudes, se tornassem algo que não deveriam ter se tornado. Em algum momento perdido nesse caminho dos 80s pra cá, os garotos começaram a não entender mais como aprender com aquela primeira paixão imbecil não correspondida pela garota que sequer sabia da existência deles. De lá pra cá, tudo piorou num sentido bem mais pé no chão, bem mais mundo real. Paixões não correspondidas viraram ódio a todos na escola. Viraram incapacidade de lidar com frustrações. Viraram psicopatias em franco desenvolvimento. Viraram um culto ao egoísmo e uma perda gigantesca de valorização à vida humana. Virou Columbine, virou Sandy Hook, Virginia Tech. Virou Realengo, virou Suzano. Talvez não tivesse virado se não houvesse um esforço tão grande para emascular e confundir os garotos nessas quase quatro décadas que separam O Último Americano Virgem do próximo Atirador de Columbine.
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¹ Custou US$ 4 milhões e arrecadou US$105 milhões, ora se isso não é sucesso!
² Mesmo num período onde filmes desse tipo normalmente faziam uma boa grana, O Último Americano Virgem lucrou menos de US$6 milhões no total.
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