The Sword Of The Lictor (A Espada do Lictor) – Gene Wolfe
- Título: Sword & Citadel: The Second Half of The Book of the New Sun – Tetralogia do Livro do Novo Sol Volume 3
- Nome do autor: Gene Wolfe
- Nome da editora: Orb Books
- Data e local de publicação: EUA, 1994;
- Número de páginas: 416 páginas;
- Gênero: Fantasia Científica;
- Sub-Gênero: Morte da Terra (Dying Earth);
- Nota: ★★★★★ (5!)
A Espada do Lictor é o terceiro livro da Tetralogia do Livro do Novo Sol, escrito por Gene Wolfe em 1982. Foi indicado ao Prêmio Nebula, mas não recebeu o prêmio. Existe uma edição em português, da Editora portuguesa Europa-América, de 1985, mas é extremamente difícil encontrar uma cópia em sebos do Brasil. Após muita procura encontrei uma cópia em Portugal, através do site wook.pt, mas o fornecedor não conseguiu entregá-la. Caso você não consiga encontrar uma cópia em português recomendo a leitura desta edição em inglês, para quem tem conhecimento intermediário do idioma, pois Gene Wolfe é um escritor que merece ser lido no idioma original.
O livro continua a contar a estória de Severian, que após ser exilado da cidade de Nessus por ter demonstrado compaixão pela prisioneira Thecla, finalmente conclui sua longa jornada até Thrax, onde agora assume a posição de Lictor (ou Mestre das Correntes).
Por algum tempo Severian continua com seu ofício de torturador, mas novamente ele acaba mostrando misericórdia por outra prisioneira condenada, e com isso acaba por fugir da cidade. Uma estranha criatura conhecida como Salamandra, que é capaz de incinerar suas vítimas, aparentemente veio até Thrax para caça-lo, e após um encontro quase fatal com a criatura ele e Dorcas acabam se separando, pois sua amante que o acompanhou até Thrax acaba entrando em depressão devido ao seu passado misterioso e decide voltar para Nessus para tentar descobrir mais sobre seu passado. O jovem torturador decide seguir para o norte, onde se desenrola uma guerra, pois descobriu que as irmãs Pelerinas estariam nessa região, e por acreditar serem elas as guardiãs por direito da Garra do Conciliador, e ele deseja retornar a inestimável relíquia com misteriosos poderes de cura para elas. A estória então segue descrevendo sua fuga de Thrax em direção à guerra que se desenrola no norte.
Mais uma vez Gene Wolfe mostra que é um dos melhores escritores vivos da língua inglesa, escrevendo uma história com uma riqueza estilística, vocabulário e dinâmica como poucos foram capazes neste gênero.
Urth (uma corruptela para Earth) é um mundo moribundo em um futuro quase inimaginavelmente distante, e só temos informações sobre esse mundo através das reflexões de um personagem construído com muita competência ao longo dos quatro livros da série, recompensando a paciência do leitor com revelações repletas de beleza poética e magistralmente escritas. Veja alguns exemplos abaixo:
Após fugir de Thrax, ao contemplar o céu repleto de estrelas nas montanhas ao norte, Severian finalmente confirma que a humanidade realmente colonizou outros planetas, e que no passado a raça dos homens construiu uma grande civilização:
… Depois de cobrir minha cabeça com minha capa, o que fui forçado a fazer para não enlouquecer, acabo pensando nos mundos que circulam esses sóis. Todos sabemos que eles existem, muitos sendo meras planícies sem fim de rochas, outros esferas de gelo ou colinas de cinzas onde fluem rios de lava, como se afligido por Abaddon; mas muitos outros são mundos mais ou menos justos, e habitados por criaturas que ou são descendentes de criações humanas ou pelo menos não muito diferentes de nós mesmos…
Logo em seguida Severian revela que a humanidade também ocupou a Lua, e que algumas pessoas em Urth ainda tem acesso a tecnologias que foram negadas ao resto da humanidade no nosso mundo natal:
… Quando eu descobri, quando garoto, que o círculo verde na Lua na verdade é uma espécie de ilha pendurada no céu, cuja cor é devida às suas florestas, agora imemorialmente antigas, plantadas nos primeiros dias da raça dos Homens, eu tive a intenção de ir até lá, e logo adicionei a isso todos os outros mundos do universo ao descobrir sua existência. Eu abandonei esse desejo como parte (assim pensei) do crescimento, quando aprendi que apenas pessoas cujas posições na sociedade pareciam para mim inalcançavelmente elevadas eram capazes de deixar Urth.
Agora esse antigo anseio reacendeu-se, e apesar de agora parecer ainda mais absurdo com a passagem dos anos (pois certamente o pequeno aprendiz que eu fui teve mais chance de disparar entre as estrelas do que esse exilado perseguido que me tornei) ele se firmou e fortaleceu porque eu aprendi nesse meio tempo a limitar a insensatez do desejo ao possível. Eu partirei, isso está resolvido. Pelo resto da minha vida ficarei incansavelmente alerta por qualquer oportunidade, por menor que seja. Eu já me encontrei uma vez sozinho entre os espelhos do Padre Inire; então Jonas, muito mais sábio que eu, lançou-se sem hesitação na maré de fótons. Quem poderia dizer que não me encontrarei perante esses espelhos novamente? …
No capítulo XVIII Severian esclarece que o Sol de Urth está morrendo, perdendo seu brilho:
Quadros, pintados em tempos antigos, mostram que nosso sol já foi mais brilhante, mostrando que até mesmo as estrelas não podiam ser vistas até o por do sol. As antigas lendas – eu tenho um livro marrom em minha bolsa que conta muitas delas – são cheias de seres mágicos que desaparecem lentamente e reaparecem da mesma forma. Sem dúvida essas estórias são baseadas na forma como as estrelas eram vistas na época.
Mas não é apenas o Sol de Urth que está morrendo, o próprio planeta é tão velho que até seu núcleo resfriou, conforme Severian descreve no Capítulo XIII ao ver uma montanha partida:
… Em tempos antigos ‒ assim eu li em um dos textos que Mestre Palaemon enviou para mim ‒ o próprio coração de Urth já esteve vivo, e os movimentos desse núcleo vivo faziam planícies irromperem como fontes, e algumas vezes abria-se mares em uma noite entre ilhas que haviam sido um continente quando vistas pelo sol da última vez. Agora é dito que ele está morto, esfriando e enrugando seu manto rochoso como o corpo de uma mulher velha em uma dessas casas abandonadas que Dorcas descreveu, mumificando-se no ar seco até que suas roupas caiam do corpo por si mesmas. Assim é, ou é dito de Urth; e aqui meia montanha separou-se de sua outra metade, caindo pelo menos uma légua…
Gene Wolfe não explica por que Urth não congelou com a diminuição gradual do brilho do sol, o leitor pode especular à vontade. Eu acredito que a humanidade poderia ter sido capaz de aumentar a absorção de energia pela atmosfera e superfície, para compensar a redução da força do sol, antes de seu declínio tecnológico no planeta.
Uma crítica comum que tenho observado entre os leitores da obra de Gene Wolfe é a moral duvidosa que ele usa para descrever algumas ações de Severian. Por exemplo, como ele pode abandonar sua amante Dorcas em uma estalagem qualquer após ela ter um colapso nervoso e sair para uma festa onde acabou mantendo relações sexuais com uma mulher que nunca viu? Em outras oportunidades, como em A Garra do Conciliador ele também manteve relações efêmeras com outras mulheres, como Jolenta, sem se preocupar com a condição fragilizada desta ou com sua relação com Dorcas. É comum os leitores sentirem-se tentados a considerá-lo promiscuo ou pouco respeitador com as mulheres, mas acredito que o autor buscou descrever um mundo muito diferente do nosso, e aos poucos vamos percebendo que essas diferenças também deveriam estender-se às relações humanas, afinal estamos muitos milhões de anos no futuro, seria ingenuidade pensar que os nossos valores permaneceriam imutáveis. Como poderíamos julgar a moral de um personagem em um mundo tão estranho e distante no tempo se até mesmo para nós, em questão de poucas décadas, valores sociais e questões de gênero e raça podem sofrer mudanças tão drásticas?
A Espada Terminus Est
Já que o título do livro trata da espada de Severian, considero oportuno escrever algo sobre ela.
Antes de Severian partir para o exílio, Mestre Palaemon confia a ele a Terminus Est. É uma espada afiada e intimidante, que serve como símbolo de seu ofício além de ser uma arma mortal. Apesar da sua utilidade, a espada é extremamente ostentosa, pois de acordo com o narrador “muita arte foi esbanjada nela”.
Ela é descrita pelo Mestre Palaemon como sendo “Leve de se erguer, pesada para descer”, devido sua óbvia utilização para decapitações. Um canal na espinha da lâmina contém hydrargyrium líquido. Aparentemente esse líquido é mercúrio, devido suas propriedades, mas não podemos ter certeza disso. A função do hydrargyrium é deslocar o peso para a guarda da arma, quando mantida erguida acima da cabeça, para facilitar ao torturador aguardar até a ordem do magistrado de baixá-la e cortar a cabeça de um condenado, o que pode levar um tempo considerável em uma cerimônia de execução. A guarda da espada é removível, uma característica comum em espadas japonesas, e Severian por vezes remove a guarda para disfarçar a espada como um bastão de caminhada.
A Terminus Est é descrita como sendo um dos últimos trabalhos de um famoso construtor de espadas, então adicionalmente à sua utilidade ela também é uma antiguidade. Em A Sombra do Torturador, Agia diz que o valor dela é dez vezes superior a todo o estoque de sua loja.
Ela não tem uma ponta, pois não foi construída com o propósito de luta, não servindo para perfurar. Além disso o hydragyrium líquido pode causar grande desequilíbrio em movimentos laterais, por isso ela não é adequada para lutas, apenas para execuções.
A espada tem lâmina dupla, tendo um lado “macho” e outro “fêmea”, o que foi feito com o único propósito de cortar cabeças de homens e mulheres com seu respectivo lado.
Mas vamos ler como a espada é descrita no capítulo XIV de A Sombra do Torturador:
Não quero aborrecê-los com um catálogo de suas virtudes e belezas; seria necessário vê-la e empunhá-la para a julgar com justiça. A lâmina penetrante tinha uma vara de comprimento, com a ponta quadrada como compete a uma espada daquelas. Qualquer dos gumes conseguia seccionar um cabelo até um palmo do guarda-mão, que era de prata maciça, com uma cabeça esculpida em cada uma das extremidades. O punho era de ônix envolto em tiras de prata, tinha dois palmos de comprimento e terminava em uma opala. Tinha sido tratada com desvelo artístico; mas a função da arte é tornar atraentes e significativas as coisas que de outra forma não os seriam e por isso a arte nada tinha a dar-lhe. As palavras Terminus Est tinham sido gravadas sobre a lâmina em belas e curiosas letras e eu já tinha aprendido o suficiente sobre línguas antigas desde que saíra do Átrio do Tempo para saber que significavam Esta é a Linha de Divisão.
‒ Está bem afiada, garanto-te ‒ disse Mestre Palaemon, ao ver-me experimentar um dos gumes com o polegar. ‒ Em nome daqueles que possam vir a ser-te entregues, conserva-a assim. A minha única dúvida é se ela não será uma companheira demasiada pesada para ti. Ergue-a e vê.
Segurei em Terminus Est tal como fizera com a espada falsa no dia da minha ascensão e levantei-a acima da cabeça, tendo o cuidado de não bater no teto. Ela deslocou-se como se eu estivesse a lutar com uma serpente.
‒ Não tens dificuldade?
‒ Não, Mestre. Mas ela contorceu-se quando eu a equilibrei.
‒ Há um canal na espinha da lâmina no qual corre um fluxo de hydrargyrium ‒ metal mais pesado que o ferro, embora escorra como água. Assim o equilíbrio passa para junto das mãos quando a lâmina está erguida e para a ponta quando ela desce. Muitas vezes terá que aguardar que termine uma oração final ou que o inquiridor te faça um sinal com a mão. A tua espada não pode vacilar nem tremer. ‒ Mas isso tu já sabes. Não necessito recomendar-te que respeites tal instrumento. Que a Moira te seja favorável, Severian.
Severian segue fielmente o conselho de seu mestre, sendo muito meticuloso no cuidado e guarda da espada, sempre limpando, lubrificando e a afiando antes e depois de uma execução, mantendo-a tão afiada que pode utilizá-la para fazer a barba, como vemos no capítulo XIV de A Espada do Lictor, quando Severian pede abrigo em uma casa na floresta após fugir de Thrax:
… ‒ Você sempre se barbeia com sua espada? A mulher perguntou. Foi a primeira vez que ela falou comigo sem reservas.
‒ É um costume, uma tradição. Se a espada não estiver afiada o suficiente para eu me barbear com ela, eu deveria ter vergonha de portá-la. E se estiver afiada o suficiente que necessidade eu teria de uma navalha?
‒ Ainda assim deve ser estranho, segurar uma lâmina tão pesada como essa, e você deve tomar muito cuidado para não se cortar.
‒ O exercício fortalece meus braços. Além disso é bom que eu maneje minha espada a cada chance que possuo, para que ela me seja tão familiar quanto meus membros.
‒ Você é um soldado, então. Eu achava que era.
‒ Eu sou um carrasco.
Em A Espada do Lictor Terminus Est será utilizada várias vezes, e terá um destino dramático no final do livro.
Não perca minha próxima análise, A Cidadela do Autarca e a análise final de O Livro do Novo Sol!
Nenhum comentário:
Postar um comentário